O ano de 2020 é um ano de crise. Ao redor do mundo, a pandemia do novo coronavírus infectou milhões e matou centenas de milhares até o final de julho. Pessoas passaram meses com circulação restrita e economias inteiras foram parcialmente paralisadas. O desemprego aumentou e o dinheiro entrando a cada mês para as famílias diminuiu.
No Brasil, não foi diferente. O país está entre os mais afetados pela covid-19, e ainda conta com o agravante de uma crise política.
Diante da pressão por suporte ao sistema de saúde e amparo à população economicamente atingida, o governo federal teve de abandonar (ao menos temporariamente) as diretrizes de diminuição de gastos. O Congresso Nacional declarou calamidade pública e aprovou o chamado orçamento de guerra, permitindo que o governo descumprisse regras fiscais como a regra de ouro – que proíbe o governo de contrair dívida para pagar despesas correntes, como salários, benefícios assistenciais e manutenção habitual da máquina pública – e o teto de gastos, norma que limita o aumento de gastos do governo.
Mas a calamidade pública e o orçamento de guerra estão previstos apenas até 31 de dezembro de 2020, sem previsão de prorrogação. Até 31 de agosto, o governo precisa apresentar sua proposta de Orçamento para 2021. Com o prazo cada vez mais próximo, cresce a pressão para achar brechas no teto de gastos.
O que é o teto de gastos
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do teto de gastos foi aprovada no final de 2016, sob a presidência de Michel Temer (2016 a 2018). O projeto foi um dos principais pontos da agenda de Temer no início de sua administração.
O teto foi pensado como uma ferramenta legal para garantir que administração pública não extrapole seus gastos. Ele teria o objetivo de manter as contas do governo sob controle, evitando uma explosão da dívida pública.
O limite para os gastos é calculado a partir das despesas do ano anterior. A operação não computa os repasses para o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), as transferências obrigatórias para estados e municípios e o pagamento de juros da dívida pública. Também não entra na conta o dinheiro que vai para as empresas estatais e os gastos eleitorais.
Subtraídas essas despesas, o limite estabelecido corresponde aos gastos restantes, ajustados pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior (calculada pelo IPCA, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). Assim, os gastos do governo não poderão ter aumento real, podendo ficar, no máximo, no mesmo nível em que estavam no ano anterior.
O teto de gastos tem validade de 20 anos, o que significa que as despesas do governo, conforme o cálculo mencionado, não terão aumento real até 2036. A premissa é que a economia cresça nesse período e, consequentemente, a participação dos gastos do governo no PIB caia ao longo do tempo. Enquanto as despesas não teriam aumento real, o PIB cresceria em termos reais.
O texto também estipula que, caso o limite de gastos seja ultrapassado, sejam acionados ‘gatilhos’ que diminuem despesas com pessoal, impedindo quaisquer reajustes em salários de servidores.
As contas públicas em 2020
Com o aumento de gastos e queda da arrecadação na pandemia, o resultado das contas públicas brasileiras em 2020 é o pior da série histórica iniciada em 1997. No primeiro semestre de 2020, as despesas do governo superaram as receitas em R$ 417,2 bilhões. A previsão do Ministério da Economia é terminar o ano com um deficit próximo de R$ 800 bilhões – mais de 11% do PIB (Produto Interno Bruto).
Como resultado, a dívida pública do governo deve crescer consideravelmente. A relação dívida/PIB, que estava em 75,8% ao final de 2019, chegou a 85,5% em junho e pode saltar para próximo de 100% até o final de 2020.
É comum que se examine a relação dívida/PIB ao se avaliar a saúde das finanças públicas. Essa relação compara a magnitude de tudo o que o país deve com quanto ele consegue produzir de bens e serviços por ano.
O teto em 2021
O teto de gastos deve crescer apenas 2,13% em 2021 – resultado da inflação baixa acumulada entre julho de 2019 e junho de 2020. Isso significa que o espaço aberto para aumento nominal dos gastos será de R$ 31 bilhões.
Há dois tipos de despesas que entram na conta do teto de gastos: as obrigatórias, como Previdência e salários de servidores; e as discricionárias, que são onde o governo encontra espaço para projetos novos e investimentos como obras públicas.
As despesas obrigatórias geralmente crescem mais que a inflação, e o reajuste delas em 2021 pode superar o espaço criado pelo crescimento do teto. Segundo a Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado, as chances de rompimento do teto de gastos em 2021 são grandes.
As opções do governo
A situação dá ao governo três opções principais: cortar gastos, aumentar a arrecadação ou flexibilizar a regra do teto.
Segundo informações de bastidores obtidas pelo Valor Econômico, a equipe de Guedes já busca despesas passíveis de corte no Orçamento de 2021. Ao mesmo tempo, o ministro pretende apresentar um novo programa social chamado Renda Brasil, que reformula e unifica benefícios sociais como o Bolsa Família, ao mesmo tempo que extingue outros gastos tidos pelo governo como ineficientes, como o abono salarial. O novo programa deve elevar os gastos do governo, pressionando ainda mais o teto. Entre políticos, economistas e sociedade civil, cresce também a ideia de implementação de uma renda básica permanente, que ocupe o lugar deixado pelo auxílio emergencial após a pandemia.
Um possível aumento da arrecadação precisaria vir de mudanças no sistema tributário brasileiro. A primeira parte da reforma enviada por Paulo Guedes ao Congresso não prevê aumento da carga tributária. A possível arrecadação extra gerada pelo imposto defendido por Guedes sobre transações eletrônicas – similar à antiga CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras) – deve ser usada para bancar a desoneração da folha de pagamentos e programas sociais do governo. Alguns economistas sugerem que o governo amplie a arrecadação mudando o Imposto de Renda, tornando-o mais progressivo, ou tributando lucros e dividendos.
Por fim, a discussão sobre flexibilização do teto de gastos é complexa. De forma muito resumida, entre economistas, há aqueles que defendem o teto de gastos, argumentando que a dívida pública não pode se tornar insustentável. Também há os que criticam o desenho da regra e que dizem que é necessário mudá-la para ampliar gastos e investimentos, especialmente na área social.
Em Brasília, o debate também gera discordâncias. Conforme mostrou reportagem publicada pelo Estado de S. Paulo em 28 de julho, há pessoas no Congresso e mesmo dentro do Executivo que defendem a flexibilização da regra. A pressão para que haja espaço para ampliar gastos sociais e investimentos em 2021 parte até de ministros do governo Bolsonaro, como mostrou matéria do jornal O Globo.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) já disse que, enquanto ocupar o posto mais alto da Casa (até 1° de fevereiro de 2021), o tema não será votado. Em evento virtual organizado pela Folha de S.Paulo e pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) na quinta-feira (30), Maia disse que há “uma brutal pressão para desfazer o teto de gastos no Brasil”, e que é necessário melhorar a eficiência do gasto público.
As manobras para burlar o teto
Mesmo com a pressão crescente, o governo conta com a manutenção do teto de gastos na elaboração do Orçamento de 2021. Mas isso não impediu o governo de procurar “alternativas” para driblar a regra.
Uma delas foi a ideia de vincular parte dos recursos do novo Fundeb, discutido em julho no Congresso, ao programa Renda Brasil. O fundo de educação não entra na conta do teto de gastos. Assim, o governo conseguiria recursos para o programa sem precisar sujeitá-los ao teto. O Congresso rejeitou a ideia e aprovou o texto do Fundeb sem a proposta do governo.
Outra manobra estudada pelo governo é aproveitar as regras fiscais excepcionais da pandemia para elevar o investimento público. A ideia é usar dinheiro de créditos extraordinários abertos para combate à pandemia – e que não estão sujeitos ao teto de gastos – em obras públicas. A lei prevê que créditos extraordinários sejam usados apenas para matérias urgentes da calamidade, como gastos na área de saúde e medidas para amenizar os impactos econômicos da pandemia. Mas integrantes do governo entendem que o uso do dinheiro em obras públicas pode ser visto como uma forma de estímulo à recuperação econômica no médio e longo prazo.
Se o dinheiro tiver seu destino decidido (se for empenhado) ainda em 2020, sob as regras fiscais de calamidade, a execução dos gastos nos anos seguintes seria permitida, mesmo sob o teto de gastos. Segundo apurou o jornal O Globo, a iniciativa foi liderada pelo ministro da Casa Civil, Braga Netto, e tem apoio do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
A Casa Civil preparava uma consulta ao Tribunal de Contas da União para saber se a manobra seria permitida em lei. Sob pressão do Ministério da Economia e do Ministério Público, a ideia foi abandonada.