Após criar expectativa de que apresentaria “provas de fraudes” no sistema eleitoral brasileiro em sua live semanal, Jair Bolsonaro acabou protagonizando um fiasco na quinta-feira (29): admitiu que tinha apenas “indícios” contra a urna eletrônica. Os “indícios”, na verdade, eram vídeos que circulam faz tempo na internet, com teorias da conspiração que já foram desmentidas.
A investida frustrada do presidente marca mais um capítulo de uma série de acusações contra as urnas eletrônicas que permeiam seu discurso desde antes de ser eleito para comandar o país. São acusações que ganharam tom de ruptura institucional em meados de 2021, com Bolsonaro ameaçando impedir as eleições de 2022 caso o voto impresso não seja instituído no Brasil.
Neste texto, mostra o que Bolsonaro apresentou na live, explica por que nada descredibiliza o sistema eleitoral brasileiro, relata como as instituições do país têm reagido ao presidente e retoma a cronologia do debate sobre as tentativas de instituir a impressão de um registro de voto no Brasil, como complemento às urnas eletrônicas.
Os vídeos de internet apresentados
Bolsonaro estava acompanhado de uma pessoa apresentada inicialmente como “especialista”, sem dar detalhes de quem se tratava. Ao final da live, eles admitiram se tratar, na verdade, de um coronel da reserva: o assessor da Casa Civil Eduardo Gomes.
O verdadeiro “especialista” que teria assessorado o Planalto no assunto – e que Bolsonaro prometeu várias vezes apresentar ao público como fiador de suas acusações – teria ficado com medo da exposição, segundo disse o presidente na live.
Na apresentação, Gomes mostrou uma série de vídeos compilados da internet. Um desses vídeos, por exemplo, era uma animação que “explicava” como um software qualquer poderia ter seu código-fonte adulterado. Assim, segundo a teoria do vídeo, se uma pessoa votasse num candidato na urna eletrônica, o voto poderia ir para outro.
Nessa animação, no entanto, sequer aparece o código que está sendo utilizado para o experimento. O narrador diz que “não convém” mostrar. Ou seja, não há qualquer comprovação de que um software como o da Justiça Eleitoral possa ser adulterado. A segurança do código-fonte oficial, por sua vez, passa por testes públicos e regulares.

Outros vídeos apresentados por Gomes relatavam fatos curiosos sobre as eleições, como momentos em que as apurações parciais dos votos, com poucas urnas contabilizadas, se assemelhavam ao resultado final, ou situações em que as pesquisas de opinião (frequentemente desacreditadas por Bolsonaro) foram frustradas pelo resultado das urnas (algo perfeitamente normal).
Para além da curiosidade, nenhum desses casos provam fraude, conforme já explicado, um a um, pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e por agências de checagem. Além disso, várias informações mostradas são falsas. Foi apresentada, por exemplo, uma tabela analisada num vídeo (de um astrólogo que faz acupuntura em árvores) em que resultados parciais da apuração apresentariam um padrão por longo tempo, o que estatisticamente seria improvável. Mas os resultados computados na tabela estão errados. O padrão alegado, portanto, não existiu.
O recuo do presidente sobre as ‘provas’
Bolsonaro mesmo admitiu que, ao contrário do que afirmou diversas vezes, não haveria “provas” de fraude, apenas “indícios”. Mas nem “indícios” apareceram na live presidencial. Foi então que Bolsonaro, candidato à reeleição em 2022, saiu-se com esta: “também não há provas de que não há fraude”. A declaração foi dada mesmo depois de a Polícia Federal ter buscado sem sucesso a tal “fraude”.
Christian Perrone, coordenador de direito e tecnologia do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade), disse ao jornal Nexo que, num evento tecnológico do tamanho das eleições, o fato de não haver indícios de magnitude suficiente para alterar o resultado da competição já prova a qualidade do sistema.
“Numa eleição, observadores, inclusive internacionais, verificam não apenas aspectos técnicos, mas também as práticas da Justiça Eleitoral. Há auditorias, supervisão em diversos momentos. E ainda assim nunca houve evento que pudesse colocar em xeque a integridade das eleições do país”, afirmou.
Engenheiro da computação e pesquisador do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da USP, Lucas Lago disse ao Nexo que a auditagem do processo poderia melhorar, mas ressaltou que os indícios apresentados por Bolsonaro já foram todos desmontados. “Não houve nada de interessante ou novo”, afirmou Lago. “As acusações de fraude que são feitas corresponderiam a momentos de transmissão/totalização dos votos. Mas isso não faz sentido, porque é possível checar a lisura dessas etapas com os boletins de urna”, disse.
Nem o PSDB acreditou na ‘fraude’
O descrédito técnico das alegações de Bolsonaro foi somado ao descrédito político. Até o PSDB, partido que após ser derrotado com Aécio Neves nas eleições de 2014 pediu auditoria nas urnas eletrônicas baseado em boatos de internet, disse que o presidente é dado a “paranóias e teorias da conspiração”.
Fora das lives, Bolsonaro é cobrado oficialmente, no TSE, para explicar suas declarações de fraudes e apresentar provas. O prazo para que o presidente cumprisse a ordem do tribunal acabava em meados de julho, mas foi postergado para agosto por conta do recesso do Judiciário.
Partidos de oposição já tinham recorrido a diversas instâncias para cobrar o presidente nesse sentido, mas nenhuma das iniciativas foi atendida. Tanto a legislação penal quanto a lei que define os crimes de responsabilidade, fundamentos de impeachment, punem quem tenta tumultuar processos eleitorais.
Na live, Bolsonaro voltou a atacar o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso. Atual presidente do TSE, o ministro tem promovido uma campanha institucional, incluindo discurso na Câmara, para demonstrar a confiabilidade das urnas eletrônicas. Com isso, Barroso enfrenta uma série de ataques do presidente, que já o acusou até de defender a pedofilia, o que não tem base na realidade. Nesta quinta (29), sem provas, Bolsonaro sugeriu que motivos obscuros teriam levado os parlamentares a seguirem Barroso e se manifestarem contra o voto impresso.
A escalada das ameaças e a reação
A defesa da impressão do voto é feita por Bolsonaro há anos. Mas a partir do primeiro semestre de 2021, seus ataques sem provas ao sistema eleitoral, especialmente às urnas eletrônicas, passaram a ser acompanhados de ameaças de ruptura institucional. O presidente passou a dizer que sem impressão do voto não haveria eleições em 2022.
As ameaças antidemocráticas foram encampadas por parte dos militares, cuja presença é grande no governo. Ministro da Defesa, o general da reserva Walter Braga Netto fez ao Congresso a mesma ameaça nos bastidores: sem voto impresso, não haveria eleições, segundo revelou o jornal O Estado de S. Paulo.
Depois que a fala veio à público, Braga Netto negou ter feito a declaração e disse que as Forças Armadas “atuam e sempre vão atuar dentro dos limites previstos na Constituição Federal”.
As reações à investida do governo, porém, cresceram. Presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, assim como outras autoridades públicas, passaram a associar abertamente o discurso bolsonarista ao golpismo. “O discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”, disse Barroso na quinta-feira (29).
Segundo informações de bastidores do jornal Folha de S.Paulo, a ameaça de Braga Netto fez aumentar a resistência também no Congresso contra a proposta do voto impresso.
No governo, os militares têm perdido espaço para os políticos profissionais do centrão. O Ministério da Casa Civil, por exemplo, saiu das mãos do general da reserva Luiz Eduardo Ramos e passou para um expoente desse grupo, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), presidente do PP.
Bolsonaro enfrenta baixa popularidade e está atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de intenção de voto para outubro de 2022. Se a eleição fosse hoje, o petista teria chances de vencer no primeiro turno.
As tentativas de voto impresso
Desde que a urna eletrônica começou a ser usada no Brasil, em 1996, já houve diferentes iniciativas para implantar a impressão de um comprovante do voto.
A discussão sobre as possibilidades de aprimoramento do processo de votação, portanto, não é nova. O que Bolsonaro traz de novidade é a defesa do tema acompanhada de acusações sem provas sobre a credibilidade de eleições já realizadas, assim como de ameaças a eleições futuras.
Todas as iniciativas em prol do voto impresso, até aqui, acabaram barradas no próprio Congresso ou depois, pelo Supremo Tribunal Federal. Confira abaixo a cronologia desse assunto no Brasil.
As idas e vindas
LEI APROVADA
Em 2002, poucos anos depois da implementação das urnas eletrônicas, a desconfiança de parlamentares quanto à segurança dessa tecnologia ainda era grande. O Congresso aprovou então uma lei federal para instituir a impressão do registro do voto. A lei foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
TESTE NAS ELEIÇÕES
Ainda em 2002, nas eleições gerais, o TSE chegou a equipar algumas seções eleitorais com a impressão de um registro de voto no Distrito Federal e em Sergipe, atingindo pouco mais de 6% do eleitorado. O experimento gerou atrasos na votação e suspeitas de violação de sigilo de voto na impressão. Um relatório da Justiça Eleitoral defendeu que impressão fosse abandonada.
REVOGAÇÃO DA IMPRESSÃO
Seguindo orientação da Justiça Eleitoral, o Congresso revogou a lei do voto impresso. Entendeu-se que a impressão do voto gerava muitos problemas, como filas mais longas nas seções eleitorais e a necessidade de intervenção humana para consertar problemas de travamento nas impressoras.
NOVA TENTATIVA VIA LEI
Em 2009, novamente o Congresso se movimentou para instituir o voto impresso. O projeto foi apresentado por um grupo de parlamentares de diversos partidos, como Ronaldo Caiado (DEM-GO), Brizola Neto (PDT-RJ) e Sarney Filho (PV-MA). O texto foi aprovado e sancionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ficou estabelecido que isso ocorreria a partir das eleições gerais de 2014.
PROIBIÇÃO PELO SUPREMO
Em 2011 uma decisão liminar (provisória) da ministra Cármen Lúcia, do Supremo, suspendeu a lei aprovada dois anos antes. O caso foi julgado em definitivo em 2013, quando o plenário do tribunal, por unanimidade, confirmou a liminar e derrubou o voto impresso. Para os ministros, não havia meio de se garantir que o voto impresso não iria comprometer o sigilo do voto, garantido pela Constituição.
AUDITORIA TUCANA E NOVA LEI
Em 2014, o então senador tucano Aécio Neves (MG) perdeu as eleições presidenciais para Dilma Rousseff por uma pequena diferença de votos. A partir de boatos nas redes sociais, o PSDB pediu uma auditoria da votação, mas não encontrou fraude. Aécio então propôs que o Congresso inserisse num projeto de lei em tramitação um dispositivo que exigisse a impressão dos registros de voto. O dispositivo foi aprovado pelos parlamentares.
VETO E REAÇÃO PARLAMENTAR
Aprovada a impressão do registro no Congresso, a então presidente Dilma Rousseff vetou a mudança, alegando o alto custo para a implementação da medida. Mas o veto foi derrubado pelos parlamentares, e a impressão foi mantida na lei, para entrar em vigor em 2018.
SUPREMO VOLTA A PROIBIR
Em junho de 2018, o plenário do Supremo suspendeu a lei. Os ministros destacaram o risco de comprometimento do sigilo do voto, o alto custo da mudança, a possibilidade de geração de desconfiança sobre eleições já realizadas e a falta de tempo para a implementação da lei nas eleições daquele ano. A decisão que viria a ser confirmada pelo colegiado em setembro de 2020.
PEC ATUAL
Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) instituiu uma comissão especial para avaliar uma Proposta de Emenda à Constituição que institui o voto impresso, defendida pelo governo federal. Mais de uma dezena de partidos, porém, muitos da própria base aliada de Bolsonaro, são contra a medida. Em meados de julho, prevendo a derrota da PEC na comissão, deputados governistas manobraram para conseguirem o adiamento da votação da proposta para agosto. A deliberação deverá ser no dia 5.
Por que há golpismo na pauta bolsonarista
O debate sobre a implementação do voto impresso tem várias dimensões, e técnicos reconhecem a legitimidade do debate. No momento atual, porém, analistas políticos afirmam que a discussão é guiada por um cálculo eleitoral e por arroubos golpistas do presidente, para além do fato de ser inviável operacionalmente para 2022.
“Isso [o discurso de fraude] gera um princípio de coesão interna ao grupo [bolsonarista] e também estabelece um processo de criação de uma identidade política comum”, disse ao Nexo Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), em uma entrevista publicada em novembro de 2020.
Ao desacreditar o sistema eleitoral, Bolsonaro também acaba por repetir abertamente o que ocorreu nos EUA. Vencido nas urnas pelo opositor Joe Biden no fim de 2020, o então presidente americano Donald Trump recusou-se a aceitar o resultado.
Seu discurso, assim como o de Bolsonaro, desacreditou o processo eleitoral, algo que acabou encorajando militantes a invadir o Congresso americano em janeiro de 2021. A confusão deixou cinco mortos e diversos feridos, além de ter sido apontada como “o maior atentado à democracia nos EUA desde a Guerra Civil”, ocorrida em meados do século 19.
No dia seguinte à invasão do Congresso americano, Bolsonaro disse que, se o Brasil não adotasse o voto impresso, teria “problema pior que nos EUA”. “Bolsonaro deve ser contido agora para não repetir Trump”, disse em entrevista ao Nexo em janeiro de 2021 a professora de ciência política da FGV-RJ Daniela Campello.