As alternativas para um programa social no pós-pandemia

Estudo do Ipea analisa diferentes políticas de transferência de renda e simula os efeitos que cada uma teria sobre a pobreza e a desigualdade

O auxílio emergencial articulado pelo Congresso foi a principal política pública de apoio à população na pandemia do novo coronavírus. Por nove meses, o programa ajudou não apenas a garantir renda aos mais vulneráveis na crise, como também levou a uma redução temporária da pobreza em 2020. O programa foi reeditado em 2021, por quatro meses (de abril a julho), com alcance e valores menores.

O benefício abriu a discussão sobre uma expansão permanente da rede de proteção social no Brasil. O auxílio é temporário e tem alto custo — por isso, a visão ampla entre economistas é que é insustentável mantê-lo de forma definitiva. Ao mesmo tempo, o cenário da crise pandêmica expôs a realidade de milhões de brasileiros com baixa renda e sem acesso aos programas tradicionais de suporte do governo, como o Bolsa Família. Entre essas pessoas, estão trabalhadores informais.

O debate sobre a reformulação dos programas sociais do governo federal ocorre também em Brasília desde ao menos meados de 2020. O ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a anunciar em junho de 2020 um novo programa — chamado primeiro de Renda Brasil e depois de Renda Cidadã — que combinaria o Bolsa Família e outros benefícios. Mas a dificuldade de encaixar o benefício no Orçamento para 2021 e no teto de gastos — regra que limita as despesas do governo a um nível pré-determinado — fez com que a iniciativa não saísse do papel.

Em 2021, a reformulação dos programas sociais segue no discurso de Guedes. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo publicada na segunda-feira (24), o ministro afirmou que “se você quer reduzir a pobreza, tem que desenhar uma política social”. “O governo deve fazer um programa forte, robusto e sustentável, dentro do teto [de gastos]”, afirmou. Guedes também voltou a falar em um “Bolsa Família melhorado”, sem especificar um desenho para esse novo programa.

O tema da reformulação dos programas sociais é o assunto central de um estudo publicado na sexta-feira (21) pelo Ipea — Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, ligado ao Ministério da Economia.

A metodologia do estudo. E os cenários simulados


O estudo do Ipea trabalha com microdados da edição anual da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) feita em 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esses dados são usados como base para simular efeitos da implementação de diferentes programas de transferência de renda.

Segundo os autores, a opção de trabalhar com dados pré-pandêmicos para fazer projeções para 2021 se justifica pelo fato de que a intenção do estudo é contribuir para o debate pensando no mundo pós-pandemia. Portanto, não seria adequado usar os dados de 2020 — que englobam o período da crise sanitária — para avaliar a política em um cenário sem a pandemia.

São analisados três possibilidades de desenho para esse programa de transferência de renda:

Focalizado: seria voltado para famílias de baixa renda. Seria uma espécie de Bolsa Família com público-alvo ampliado, chegando a todas as pessoas que vivem em domicílios com renda per capita menor que R$ 260 ao mês. No Bolsa Família, podem participar famílias com renda mensal de até R$ 178 por pessoa.
Híbrido: beneficiaria todas as crianças e jovens — ou seja, toda a população de 0 a 18 anos; e ainda chegaria a pessoas de todas as idades que moram em domicílios com renda per capita menor que R$ 260 ao mês.
Universal: chegaria em valor único a todos os brasileiros, independentemente da idade e da renda.


Em cada caso, o Bolsa Família é substituído pelo novo programa. O valor e o alcance exato do novo benefício em cada um dos cenários depende da verba disponibilizada para bancar o programa. O impacto do programa, portanto, depende de quanto dinheiro é alocado para ele.

Para cada um dos três desenhos, o estudo faz análise do impacto sob três possibilidades diferentes de orçamento. São elas:

R$ 58 bilhões por ano. É o cenário considerado de neutralidade fiscal, uma vez que seria implementado a partir da unificação de programas atualmente existentes. Além da junção da verba de Bolsa Família, abono salarial e benefício do salário-família, seriam extintas as deduções por dependentes no Imposto de Renda.
R$ 120 bilhões por ano. É o cenário considerado intermediário.
R$ 180 bilhões por ano. É o cenário que colocaria o Brasil no patamar médio de gastos com programas sociais observado em países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Esse patamar é de cerca de 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto) a cada ano.


Em todos os cenários, o gasto com o novo programa social seria menor que no caso do auxílio emergencial de R$ 600 implementado por cinco meses em 2020 (por quatro meses o valor caiu pela metade naquele ano). Se fosse pago ao longo de um ano inteiro, o auxílio de R$ 600 geraria uma despesa de cerca de R$ 540 bilhões aos cofres públicos.

Os resultados das simulações


A partir desses parâmetros, os pesquisadores do Ipea — Luís Henrique Paiva, Leticia Bartholo, Pedro Ferreira de Souza e Rodrigo Orair — simularam os efeitos que cada programa poderia ter sobre a desigualdade e a pobreza no Brasil, em cada um dos diferentes cenários de disponibilidade de verba. A comparação é feita com o cenário em que o principal programa de transferência de renda é o Bolsa Família.

Para analisar os impactos na desigualdade de renda, foi estimado o índice Gini, que é um coeficiente matemático que calcula a concentração de algo — pode ser renda, votos, nível de educação ou outra coisa. O Gini varia de 0 a 1, sendo que o 0 corresponde à igualdade total e o 1 corresponde à desigualdade completa. Quanto mais alto for o índice, maior a desigualdade.

No caso dos possíveis programas, o desenho focalizado — voltado para pessoas de baixa renda — tem os maiores efeitos de redução da desigualdade em relação ao cenário base do Bolsa Família. O programa híbrido, que chega em crianças, em adolescentes e na população de baixa renda, também deve diminuir a desigualdade de renda. O impacto fica mais forte quando há mais recursos disponíveis para o programa — isso porque esses aumentos devem se traduzir em benefícios maiores transferidos a cada mês.

OS EFEITOS NA DESIGUALDADE

Queda estimada da desigualdade, por programa e verba. Efeitos maiores no focalizado e híbrido

Já o benefício universal tem resultados ambíguos. Na comparação com o cenário com Bolsa Família, a desigualdade cresce quando o novo benefício pago é o menor dentre os cenários avaliados (verba anual de R$ 58 bilhões). Isso porque o Bolsa Família — que tem cerca de R$ 35 bilhões de verba anual — é um programa voltado para famílias de baixa renda, e seria substituído por um benefício que chega a todos os brasileiros. Conforme esse benefício aumenta, a desigualdade passa a cair — mas em nível menor que nos outros desenhos analisados pelo estudo.

O impacto estimado na pobreza e extrema pobreza


O estudo do Ipea também estima o que acontece com a taxa de pobreza no Brasil em cada cenário simulado. A linha de pobreza considerada é aquela usada pelo Banco Mundial: quem vive com menos de US$ 5,50 por dia — ou R$ 434 por mês em junho de 2019.

24,1%

é a taxa de pobreza no cenário com Bolsa Família, usado como referência para comparação no estudo do Ipea.

As simulações do estudo mostram que o impacto de qualquer um dos programas propostos é limitado quando a verba da política é de R$ 58 bilhões ao ano. Com o orçamento mais modesto, o benefício universal novamente tem o efeito indesejado de aumentar a pobreza em relação ao cenário com o Bolsa Família, assim como aumentou a desigualdade.

A TAXA DE POBREZA

Queda estimada na taxa de pobreza, por programa e verba. Efeito maior no focalizado e no híbrido. Efeito cresce conforme há mais verba

No caso do programa focalizado com verba anual de R$ 180 bilhões, a redução da pobreza poderia ser da ordem de quase 10 pontos percentuais. A taxa de pobreza no país cairia de 24,1% para 14,6%.

O estudo repete o exercício para a extrema pobreza. A linha usada para a extrema pobreza é de US$ 1,90 por dia, ou R$ 150 por mês em junho de 2019.

6,2%

é a taxa de extrema pobreza no cenário com Bolsa Família, usado como referência para comparação no estudo do Ipea.

A EXTREMA POBREZA

Queda estimada na taxa de extrema pobreza, por prog. e verba. Efeito maior no focalizado e no híbrido. Efeito cresce conforme há mais verba

O cenário novamente indica que o poder de combate à extrema pobreza é menor no caso do benefício universal. Se esse programa fosse implementado, a taxa de extrema pobreza cresceria no Brasil em dois dos três cenários analisados. Os programas focalizado e híbrido teriam maiores efeitos sobre a extrema pobreza.

Conclusões do estudo


O estudo mostra, portanto, que a adoção de uma renda básica universal que atendesse a todos os brasileiros seria menos efetiva para atacar a desigualdade e a pobreza no Brasil. De acordo com os autores, é recomendado trabalhar com “algum grau de focalização (por meio de um benefício focalizado ou do componente focalizado de um modelo híbrido)”.

Além disso, o estudo conclui que no caso de adoção de programas como o programa focalizado ou o híbrido, “o fator mais importante para a redução da pobreza e da desigualdade é o orçamento total do programa”. Ou seja, no cenário mais modesto, de verba de R$ 58 bilhões, os efeitos são discretos. Quanto mais verba for disponibilizada para bancar um programa como os estudados, maior vai ser o impacto para combater a pobreza e a desigualdade no Brasil.

Portanto, os autores dizem que “garantir o orçamento mais robusto possível para as transferências não contributivas é algo crítico”. Não basta ter o programa mais eficiente; é necessário também ter recursos volumosos à disposição.

nexojornal