O que os populismos querem dizer

O espectro do populismo assombra o mundo. A democracia liberal faz nascer de seu interior movimentos ditos “populistas”. Na América do Sul, muito se fala da relação da esquerda com o populismo, com exemplos vindos da Argentina, da Venezuela, da Bolívia, do Equador, do Brasil etc. Movimentos de esquerda de outras partes são associados também ao populismo (de modo nem sempre justo), como o ex-candidato democrata Bernie Sanders; o Podemos, na Espanha; e o Syriza, na Grécia. O cenário mundial, porém, é marcado pelo avanço de um populismo de direita. Na Europa, ele está no poder (Hungria e Polônia) ou avança em seu rumo (Áustria, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha e países escandinavos) chegando a compor, em alguns casos, coalizões no poder. Na Itália, terra de Berlusconi, um baluarte do populismo, assistimos à ascensão do Movimento Cinco Estrelas e de seu comediante Beppe Grillo, que assume o poder em aliança com o partido xenófobo Liga. Fora da Europa, vemos Trump, nos EUA; Erdogan, na Turquia; Netanyahu, em Israel; e Putin, na Rússia.

“Um momento!”, nos diria um(a) prudente intelectual. “Chamar movimentos tão diferentes entre si de ‘populistas’ possuiria alguma valia? Não serão tais palavras meros termos guarda-chuvas usados para o combate político midiático?”. A questão se complica quando lembramos que democracia significa “soberania do povo”. “Ora”, diria um(a) radical democrata, “se o líder dito ‘populista’ apela ao povo, exigindo que a democracia o tenha como protagonista, então devemos elogiá-lo e repudiar quem joga o jogo das elites. Contra os tecnocratas demófobos, sejamos todos populistas!”. Seria bom se problemas reais aceitassem respostas fáceis, mas comecemos por questões difíceis: o que é o populismo? O que os populismos querem dizer a nossas democracias em crise?

O populismo tem sentidos diferentes, às vezes até inversos, a depender se estamos nos EUA, na Europa, na Rússia ou na América Latina. Sabemos da sua importância na história dos países latino-americanos. Às vezes, ele é visto como um meio de politização das massas e de transformação social em países subdesenvolvidos, com uma liderança carismática em conexão direta com o povo e instituidora de direitos sociais. Outras vezes, ele é associado a uma política econômica irresponsável, que, sem tocar em questões estruturais que viabilizem um desenvolvimento sustentável, gera ciclos com crescimento econômico, distribuição de renda e inclusão social, seguidos de hiperinflação, endividamento, estagnação e desigualdade.

Não precisamos de muito esforço para perceber a atualidade desta questão entre nós. Mas o que interessa é que, para além de nossas eventuais idiossincrasias, os populismos são uma sombra presente nas democracias contemporâneas. Devemos vê-los como emergindo internamente das democracias enquanto sintoma de mal-estar e expressão de ilusão. A mundialização, a informatização e a revolução cultural borraram as estruturas de classe; minaram os partidos políticos; enfraqueceram os Estados; oligarquizaram as tomadas de decisão; precarizaram o trabalho; e tornaram a sociedade menos legível para os cidadãos. Junto com o aumento das exigências democráticas, veio uma sensação de impotência política e uma crescente desigualdade social e insegurança existencial. O fermento de onde cresce o bolo populista está nessa conjugação entre expectativa aumentada, política tradicional desencantada e sociedade em dolorosa e incerta mutação.

Desse terreno fértil nascem movimentos que possuem uma “lógica populista”, que dá uma resposta simplificadora à crise e que possui efeitos destrutivos para as democracias. Podemos sintetizá-la em dois traços: ela é antipluralista e transforma todas as questões políticas em problemas morais. Para os populistas, o sistema democrático está corrompido radicalmente pelos “políticos”, pelos “poderosos” ou pelos “estrangeiros”. Quando no poder, mesmo que suas políticas sejam falsas, impossíveis de realizar, ou, quando postas em prática, tenham efeitos perversos, ele continua infalível. Qualquer crítica ao governo será acusada de ser contra o povo; qualquer crise instaurada poderá ser um complô secreto.

O populista pretende ter uma “representação exclusiva” do povo real e, por isso, trabalha para minar o que pode lhe ser externo: justiça independente, órgãos de controle, Ministério Público, aparelhos policiais, imprensa livre etc. Qualquer ação contrária a seus interesses será posta como contrária ao povo; qualquer posição sobre “imparcialidade” será combatida como elitista. Dos críticos, surgem “fake news”; de si, virão “verdades alternativas”. Mesmo quando pego em atos ilegais, estará imune: se não forem rechaçadas como mentiras espúrias e assumidas como fatos, permanecerá inocente: “pelo povo, tudo vale”. No limite, o governo populista abrirá mão do próprio povo, dizendo representar o “povo real”.

Mas se a lógica populista é perigosa para a democracia, como combatê-la? Começando por escutar o que os populismos têm a nos dizer, lendo-os como sintomas de uma democracia que não vai bem. É inútil combatermos os populismos, defendendo o estado de coisas existente e pedindo que adormeçam os afetos movidos por um radical sentimento de injustiça. A ascensão dos populismos expressa a urgência na reconstrução das democracias. As derivas populistas serão prevenidas caso assumamos, de forma responsável, as tarefas de renovação da questão social e de intensificação da democracia. Contra o circuito perverso de um líder populista, que expropria o cidadão de sua autonomia e o povo de sua multiplicidade, temos que acionar uma imaginação institucional para multiplicar as formas de soberania popular e os modos de participação cidadã, retomando, no mesmo passo, o projeto de uma sociedade fundada na igualdade.


PERFIL ARTIGOAndré Magnelli é diretor do Ateliê de Humanidades. Artigo publicado no Jornal do Brasil

O risco de um populismo antipolítico

E m artigo publicado aqui em 22 de maio, afirmei que a lógica populista é homogeneizadora e excludente e defendi que devemos interpretá-la como um sintoma que demanda como terapia o aprofundamento da democracia e da Justiça. Lá, eu tratava dos poderes Executivo e Legislativo; agora é hora de focar nos contrapoderes.

Sabemos que a democracia não é feita apenas de eleições, pois a soberania do povo se manifesta também de outros modos. A democracia direta é um deles, mas não o único, pois pode cair no autoritarismo de um líder que decide por aclamação e suprime as liberdades. Além disso sabemos que qualquer poder pode se tornar dominação; que qualquer representante pode se voltar contra o representado; e que todo governo pode se corromper, se deteriorar e gangrenar. É por isso que as democracias funcionam também na forma do “contra”: “Vigiemos! Critiquemos! Julguemos! Impeçamos!” – dizem os que alertam para que não se adormeça entre uma eleição e outra. O povo é soberano não apenas quando elege um representante ou participa de uma decisão; ele o é, também, quando atua no modo de uma “democracia-pelo-contra”. Soberano é o povo que vigia, impede e veta os governantes; que desconfia e exige prestação de contas; que julga, critica e, mesmo, abre um processo jurídico ou aciona o MP contra os poderes.

Ela é, normalmente, um sinal de maturidade, pois floresce quando existe uma cidadania livre, instruída, plural e ativa; uma Justiça autônoma, racionalizada e responsiva; e uma mídia independente dos poderes econômicos e políticos e com responsabilidade profissional e ética. Mas ela pode ser sintoma, também, de que a política está em crise. A sua expansão pelo mundo aponta para um aprofundamento democrático, pois cresceram as exigências e atuações cidadãs, revolucionou-se a comunicação e fortaleceram-se as instituições de controle e vigilância; mas sinaliza também a perda de laços sociais e a deterioração das instituições. Não é por um acaso, assim, que os cidadãos apostem suas fichas em duas frentes: primeira, em uma atividade crítica feita pela imprensa e, cada vez mais, em redes digitais bem anárquicas; segunda, na Justiça e no MP, vistos como “guardiões da democracia”. Isso é um avanço num país como o nosso, em que os “donos do poder” se encontravam acima da lei. Contudo, temos que estar alertas contra eventuais derivas, pois arriscamos cair em um “populismo antipolítico” por meio de uma aliança midiático-jurídica-opinativa, em que a política se torna um bem de consumo entre o prazer do entretenimento e o ódio suscitado por indícios de crime e denúncias de desfeitos.

Juízes, promotores, jornalistas e ativistas cumprem com sua parte na democracia; porém, podem exacerbar seu papel curto-circuitando os poderes, reivindicando supremacia na representação e criando uma aparência de democracia direta pela penalização da política. De um passo em falso, abrem-se abismos: da vigilância, eis uma paixão pela denúncia destrutiva; das resistências, eis uma ação avessa à deliberação e afeita a vetar tudo; e da opinião crítica, eis uma aliança diabólica entre uma opinião pública hipercrítica e despolitizada, uma Justiça ativista e inquisitória e uma mídia sensacionalista e acusatória. A crítica dos políticos pode se reverter no prazer de estigmatizar toda ação política e autoridade governante, fazendo o Estado ser visto como um inimigo a ser combatido, e não um representante a ser reapropriado. O nojo da política e a afirmação de que “todos os políticos são iguais” se convertem facilmente na palavra de ordem “Que se vão todos”. Arrisca-se a oscilar, impotentemente, entre a indignação resignada e o apelo a uma intervenção messiânico-antissistêmica, militar ou alienígena.

Uma democracia que se volta contra a política destrói a si mesma, paralisando-se na limpeza ética e na diabolização do outro. Do ódio à política resulta um teatro da crueldade ou um circo sadomasoquista. A cidadania atua pela vigilância e crítica, mas a política é também projeção no futuro e afirmação de vontade pública. A luta contra a corrupção deve ser uma ode à política em sua grandeza, transformando a força moral da indignação em uma renovação dos quadros políticos e em uma agenda reformista. A ditadura está mirada no retrovisor, e a democracia é visada no nosso horizonte. A era da abertura democrática está atrás de nós; à nossa frente, temos o desafio maior de construção de uma sociedade em que a democracia seja uma forma de vida.


André Magnelli é doutor em Sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades. Artigo produzido pelo Ateliê de Humanidades e publicado no Jornal do Brasil em 10 de junho de 2018.