Na sua mais recente live de quinta-feira (26), o presidente Jair Bolsonaro fez um apelo aos espectadores: “Tenho certeza que você pode apagar um ponto de luz na sua casa agora.” Na mesma transmissão, ele afirmou que a situação dos reservatórios das usinas hidrelétricas está “no limite do limite”.
A crise hídrica vivida no Brasil é a pior em 90 anos. Diante da redução do nível dos reservatórios, órgãos técnicos do governo alertam que há possibilidade de faltar energia no Brasil entre outubro e novembro de 2021. O governo evita falar em racionamento.
O economista-chefe do Itaú Unibanco, Mário Mesquita, afirmou na terça-feira (24) que a crise hidrelétrica gera um risco maior para a economia do que o avanço da variante delta do coronavírus no país. No dia seguinte, o ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizou a situação: “Qual é o problema agora: que a energia vai ficar um pouco mais cara porque choveu menos?”.
Neste texto, explica como a crise no setor elétrico ameaça a recuperação da atividade.
A conta de luz e a inflação
A população sente a crise hidrelétrica principalmente pelo aumento da conta de luz. Um dos canais pelo qual isso ocorre é o acionamento das bandeiras tarifárias, que são sobretaxas cobradas sobre as tarifas em tempos de produção mais cara de energia – elas vão de verde (sem custo adicional) a vermelho patamar dois.
Desde junho de 2021, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) mantém acionada a bandeira vermelha patamar dois. Em julho, a sobretaxa foi reajustada, encarecendo ainda mais a conta de luz. O governo já indicou que deve anunciar novos aumentos nas bandeiras.
A energia elétrica é o maior motor da inflação em meados de 2021. O peso da conta de luz no bolso da população vem subindo a cada mês.
20,9%
foi o aumento médio da conta de luz entre meados de agosto de 2020 e meados de agosto de 2021, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
CONTA DE LUZ EM ALTA
Economistas avaliam que o aumento da conta de luz é uma forma de racionamento via preço: ou seja, ao aumentar as tarifas, o governo induz a população a reagir reduzindo o consumo. O Ministério de Minas e Energia nega essa intenção.
O efeito cascata da energia elétrica
O encarecimento da energia elétrica por causa da crise hídrica não afeta somente as residências. O setor produtivo também arca com o aumento. Sobem os custos de empresas, estabelecimentos comerciais, indústrias e produtores rurais.
Empresários repassam o aumento dos custos de produção para os consumidores. Como consequência, bens e serviços ficam mais caros e a inflação ganha um novo impulso.
Por estar presente em praticamente toda a cadeia produtiva brasileira, a energia elétrica gera um efeito cascata de aumento de preços. Mercadorias de todos os tipos – de carros a alimentos – podem continuar subindo, isso já em um contexto de inflação alta.
Se esse movimento de fato acontecer, o Banco Central pode elevar a taxa de juros para conter a alta de preços. Isso, por sua vez, pode esfriar a atividade econômica por causa do aumento do custo do crédito no país.
O impacto sobre a indústria
No Brasil, o setor que mais consome energia elétrica é a indústria – à frente dos comércios e até mesmo das residências. O dado é da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), empresa pública ligada ao Ministério de Minas e Energia.
35%
de toda a energia elétrica consumida no Brasil em 2020 foi usada pela indústria, segundo a EPE.
Também de acordo com a EPE, o segmento industrial que consome a maior fatia de energia é a metalurgia, com praticamente um quarto de todo o consumo da indústria em 2020. A indústria alimentícia foi a segunda que mais utilizou energia elétrica nesse ano, como mostra o gráfico abaixo.
INDÚSTRIA E ENERGIA
A crise elétrica pode impactar diretamente a produção desses setores industriais. Os custos de produção mais altos podem levar à diminuição das margens de lucro e ao repasse dos aumentos para os consumidores. Ao mesmo tempo, a possibilidade de racionamento ou de apagão também ameaça a capacidade produtiva.
O governo já criou incentivos para economia de energia na indústria em 2021. Na segunda-feira (23), o Ministério de Minas e Energia publicou uma portaria estabelecendo o programa de Redução Voluntária de Demanda de Energia Elétrica. O plano é destinado apenas a grandes consumidores – grandes empresas, geralmente indústrias – que se comprometerem a reduzir o consumo de 20 a 35 megawatts por dia. Para estimular a adesão ao racionamento, o governo dará uma compensação financeira às empresas.
O cenário de racionamento. E a lembrança de 2001
Apesar do agravamento da crise, da pressão inflacionária e da ameaça à indústria, o governo de Bolsonaro segue evitando falar em racionamento – medida que impõe a obrigação de redução do consumo de energia. Na quarta-feira (25), o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, repetiu a máxima adotada desde o início da crise: “Não trabalhamos com essa hipótese”.
A medida, que já foi adotada sob Fernando Henrique Cardoso, em 2001, é associada a um alto custo político e econômico. Do lado político, o entendimento é que isso pode elevar ainda mais a impopularidade de Bolsonaro em um contexto de maior proximidade das eleições de 2022, quando ele tentará reeleição.
Além disso, há um receio dentro do governo Bolsonaro de que a imposição de limitações ao consumo de energia leve à redução ainda maior da atividade econômica, que já está abalada pela pandemia de covid-19, e tenha reflexos eleitorais.
A memória de 2001 contribui para os temores: um relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) divulgado em 2009 mostrou que a crise elétrica de 2001 gerou queda na atividade econômica e impactou o desemprego no país.
Como a economia pode afetar a crise elétrica
Além do potencial impacto da crise elétrica sobre a economia, há também a possibilidade de ocorrer o caminho contrário: a economia impactar a crise elétrica.
Nos últimos meses de 2021, a atividade econômica tende a crescer com o avanço da vacinação no país. Em um contexto de menor temor com relação ao coronavírus, a economia pode crescer e elevar a demanda por energia elétrica.
Nesse sentido, a pressão sobre o sistema elétrico pode aumentar nos últimos meses do ano. E esse período é justamente o tido por órgãos técnicos como aquele em que há maior risco de apagão e de incapacidade de suprir a demanda por energia no Brasil.