O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, se reuniu nesta terça-feira (15) com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e planeja encontrar presidentes de outros Poderes em busca de apoio para sua proposta de rebaixar o status da covid-19 no Brasil de pandemia para endemia.
Estudada pelo ministério com a desaceleração recente dos casos de covid-19 no país, a proposta pode passar a valer no fim de março, caso a pasta avalie que é possível mudar as regras atuais e não tratar mais a doença como emergência de saúde pública. Especialistas questionam a iniciativa.
A seguir, explicará o que é uma endemia, por que o governo federal cogita tratar a covid-19 como doença endêmica e o que mudaria na prática se essa medida se confirmar. Traz também avaliações de pesquisadores sobre a proposta.
O que é uma endemia
Doenças são consideradas endêmicas quando estão sempre presentes — ou seja, é improvável que sejam erradicadas —, mas sua propagação é estável e previsível e seus surtos estão limitados a determinada região. A dengue, por exemplo, é uma doença endêmica no Brasil.
A endemia se diferencia da epidemia por representar um “comportamento usual e esperado de uma doença em uma população”, enquanto a epidemia é uma modificação nesse padrão de casos — isto é, um aumento da circulação da doença além do esperado.
Os coronavírus, por exemplo, são conhecidos pela ciência desde os anos 1960. Os quatro tipos do vírus que há séculos causam resfriados comuns em humanos são endêmicos — a versão do vírus que causa a covid-19, por outro lado, se tornou uma epidemia e, mais tarde, uma pandemia (quando o vírus se espalhou a nível global).
A gripe, causada pelo vírus da influenza, também é uma doença endêmica. Estima-se que, por ano, morram em todo o mundo 650 mil pessoas devido à gripe sazonal — em comparação, em 2021 morreram 3,5 milhões por covid-19. O fato de a gripe ser endêmica implica a aceitação dessa letalidade, e não há adoção de medidas rigorosas para prevenir seu contágio, como o isolamento social e lockdowns.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), maior autoridade sanitária do mundo, é o organismo responsável por declarar pandemias como a da covid-19. Apenas ela pode fazer de fato a reclassificação da doença para endemia — o que ainda não fez. Governos como o do Brasil não têm essa competência.
Quando fala em “rebaixar” a pandemia de covid-19 para endemia, o Ministério da Saúde busca, mais precisamente, decretar o fim do estado de emergência em saúde pública instituído pelo poder público em 2020 para lidar de forma mais adequada com os desafios da doença no Brasil.
O que muda nesse cenário
Com a revogação do estado de emergência de saúde pública, normas ou recomendações sanitárias estabelecidas pelo governo federal desde março de 2020 para combater a pandemia de covid-19 no Brasil podem perder validade. Entre elas, estão:
- o isolamento de pessoas infectadas com o coronavírus
- restrições para entrada e saída do país por causa da covid-19
- exigência de testes ou exames médicos de pessoas com sintomas
A lei n. 13.979, que estabeleceu as medidas para enfrentar a pandemia em 2020, também facilitou importações de medicamentos, dispensou licitação para compras de insumos ou equipamentos usados no combate à covid-19 (como respiradores) e permitiu a autorização emergencial de vacinas.
A Coronavac e o imunizante da Janssen, por exemplo, receberam da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorização apenas para uso emergencial no Brasil, o que se deve ao estado de emergência de saúde pública — outras vacinas, como a da Pfizer, receberam autorização definitiva. Caso o estado de emergência seja revogado, em tese essa permissão também cai.
Levantamento preliminar divulgado pelo jornal O Globo mostra que, apenas no Ministério da Saúde, há pelo menos 168 portarias cujos efeitos estão vinculados ao estado de emergência e que seriam invalidadas caso ele fosse finalizado. Outros órgãos do governo que criaram novas normas por causa da pandemia também devem ser afetados.
O ministro Marcelo Queiroga tem indicado que busca uma saída do atual status de pandemia de forma gradual. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, auxiliares do ministro avaliam saídas como publicar instrumentos transitórios para estimular a redução das restrições e reconhecer que a doença perdeu força, mas deixar margem para medidas como o uso emergencial das vacinas.
Experiências bem-sucedidas nestes últimos anos nas políticas públicas também poderão ser incorporadas de forma definitiva à administração pública. Em entrevista ao jornal O Globo, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, citou como exemplo para ficar a aplicação de consultas médicas não presenciais.
Parte das restrições que o governo federal planeja derrubar, como a recomendação do uso de máscaras, já caiu em parte do país, devido à permissão dada pelo Supremo Tribunal Federal em 2020 para que os estados e municípios definam com autonomia suas políticas contra a covid-19. Capitais como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Luís e estados como São Paulo e o Distrito Federal flexibilizaram o uso de máscaras desde o fim de 2021.
O que o governo afirma
A justificativa do ministro Marcelo Queiroga para buscar o rebaixamento do status da covid-19 de pandemia para endemia é considerar que o cenário da covid-19 no Brasil está controlado depois da onda de infecções no início do ano causada pela variante ômicron.
Desde a metade de fevereiro, quando a onda causada pela ômicron chegou ao pico, os números de casos e óbitos pela doença têm desacelerado, segundo dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde). Nesta terça-feira (15), o país registrou 52 mil infecções e 336 mortes pela covid-19.
O quadro se reflete na tendência de redução de internações e ocupações de leitos de UTI (unidades de terapia intensiva), medidas pelo Observatório Covid-19 da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Em 11 estados, segundo o boletim mais recente do grupo, essas taxas caíram de forma expressiva na semana do dia 8 de março.
Ao mesmo tempo, a vacinação tem avançado. Nesta terça (15), 73,6% da população estava vacinada com duas doses do imunizante contra a covid-19, pouco mais de 32% — número ainda considerado pequeno — estava vacinado com a terceira dose de reforço e 52,8% das crianças de 5 a 11 anos estavam vacinadas com a primeira dose, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa.
A possibilidade de que a covid-19 se torne endemia tem sido cogitada desde o fim de 2021 pela comunidade científica. Para a maioria dos especialistas, com o fim da pandemia a doença pode ter comportamento semelhante ao da gripe comum — as vacinas vão conseguir reduzir a evolução para quadros graves e mortes, mas não impedir a transmissão do vírus.
Queiroga havia cogitado reduzir as restrições contra a doença pela primeira vez em dezembro. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, seu plano era lançar um documento recomendando desobrigar o uso de máscaras no Natal. O plano foi interrompido pelo surgimento da variante ômicron, identificada pela primeira vez no Brasil em novembro de 2021.
Ainda segundo informações de bastidores divulgadas pelo jornal, o ministro quer ser reconhecido como o gestor que encerrou a crise sanitária no Brasil. Em conversa com integrantes de outros Poderes, ele busca articulação para viabilizar o fim da emergência de saúde pública.
Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, disse ter preocupação com a possibilidade nesta terça (15). Entre os motivos, está o crescimento de casos de covid-19 na China, que enfrenta sua pior onda da doença em dois anos. Ele afirmou, porém, que deve levar a discussão para líderes do Senado.
O que especialistas dizem
Com o anúncio do governo federal de que estuda mudar o status da covid-19, especialistas da área de saúde pública têm dito que a medida é precipitada e que os números da doença, apesar de mais baixos que no pico da onda causada pela ômicron, ainda estão altos para que se retirem as restrições.
Brigina Kemp, assessora técnica do Conselho dos Secretários Municipais de Saúde de São Paulo e integrante do Observatório Covid-19 BR, afirmou ao jornal Nexo no início de março que não se pode comparar o cenário de agora apenas com a onda de janeiro, que registrou recordes de infecções.
“[Para estabelecer a endemia] teríamos que ter um número de casos bem inferior ao que tivemos [durante toda a pandemia] e observar sua manutenção durante meses ou anos”, disse. Apesar de ter se estabilizado nas últimas semanas, o cenário da covid-19 ainda é imprevisível, e a doença poderia registrar novas altas com novas variantes, por exemplo.
Outro motivo que tem levado pesquisadores a desconfiar do rebaixamento da covid-19 para endemia é a falta de parâmetros para a decisão. Ainda não se sabe qual o número de casos e mortes pela doença aceitáveis ou esperados no cenário endêmico, por exemplo.
“Só podemos falar de endemia quando conhecemos a tendência histórica da doença bem estabelecida, e ainda não temos isso para a covid”, disse o professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) Paulo Lotufo ao jornal Folha de S.Paulo. O epidemiologista atribui essas incertezas à própria novidade da covid-19, descoberta em 2019.
Nésio Fernandes, secretário de Saúde do governo do estado do Espírito Santo, levantou no início do mês em suas redes sociais alguns critérios que poderiam nortear o rebaixamento da covid-19 para endemia. Entre eles, estão cobertura vacinal de 90% com duas doses, três a quatro meses de baixa incidência, ausência de novas variantes de preocupação e incorporação de novos tratamentos no sistema de saúde.
“Decretos e portarias não mudam o comportamento da transmissão”, disse no Twitter no dia 3 de março. Os critérios que Fernandes levantou, porém, ainda não são consenso. A OMS não determinou, no Brasil ou em outros países, o que deve ser levado em conta para se cogitar o estado de endemia, nem disse cogitar mudar o status da covid-19 em suas declarações mais recentes.
Julio Croda, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Fiocruz, afirma, por outro lado, que o avanço da vacinação e os recordes de infecções causadas pela ômicron garantiram um alto nível de proteção contra a covid-19. “A doença se tornou menos letal”, disse à BBC Brasil.
Em fevereiro, a Fiocruz publicou um relatório dizendo que, por causa do alto nível de proteção recente da população, o Brasil tem a chance de frear a covid-19 ainda em 2022. Alcançar esse resultado, porém, dependeria da manutenção das restrições contra a doença nestes próximos meses.
Essas considerações não trabalham com a possibilidade de que surja uma nova variante de preocupação do coronavírus. Nesta terça-feira (15), o Ministério da Saúde confirmou dois casos no Brasil da variante deltacron, combinação do material genético da delta e da ômicron. A OMS ainda estuda a variante e não encontrou evidências de que ela seja mais transmissível ou letal.
O que outros países fizeram
Parte dos países da Europa retirou as restrições contra a covid-19 nos últimos meses, em meio à onda de infecções causada pela variante ômicron. A Dinamarca, por exemplo, suspendeu todas as normas sanitárias no início de fevereiro, mesmo com o avanço de casos.
O país justificou a iniciativa dizendo que, embora o número de casos estivesse alto na época, hospitalizações e mortes cresciam em ritmo mais lento. Os dinamarqueses também tinham alta confiança nas vacinas e dois terços haviam recebido a dose de reforço.
A Inglaterra também suspendeu as restrições contra o coronavírus em fevereiro, em uma estratégia batizada “convivendo com a covid”. O governo determinou o fim do isolamento obrigatório para pessoas infectadas e anunciou que deixaria de disponibilizar testes gratuitos para a covid.
O relaxamento foi considerado prematuro por especialistas do país, que disseram temer que com o fim das restrições a Inglaterra fique mais vulnerável a possíveis novas variantes do coronavírus. A decisão foi tomada pelo primeiro-ministro Boris Johnson a despeito das contra-indicações.
A OMS pediu em fevereiro cautela após esses anúncios e defendeu a abertura gradual dos países — apesar de não cogitar mais medidas duras, como o lockdown. Tedros Adhanom, diretor-geral da entidade, disse na época que era preocupante que países flexibilizassem as restrições sem levar em conta contra-indicações.
“Mais transmissão significa mais mortes. […] Não estamos pedindo que nenhum país retorne ao chamado lockdown. Mas estamos pedindo a todos os países que protejam seu povo usando todos os recursos disponíveis, não apenas vacinas”
Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, em declaração em fevereiro de 2022