Boa parte do Amapá sofre com um apagão desde o dia 3 de novembro. Contando com o primeiro dia, já são onze dias nesta sexta-feira (11) sem acesso regular à energia elétrica em 13 dos 16 municípios do estado.
A falta de energia afetou mais de 765 mil pessoas, prejudicou a distribuição de água e paralisou serviços; tudo isso em meio à pandemia do novo coronavírus. Houve perda de alimentos por falta de refrigeração e estabelecimentos comerciais foram fechados.
Desde sexta-feira (6), há registros de protestos da população em locais como a capital Macapá e outras áreas atingidas pelo apagão. Algumas das manifestações foram reprimidas pela Polícia Militar.
O governo federal disse na quarta-feira (11) que o fornecimento de energia voltou a operar em 80% da capacidade. Há sistemas de rodízio em algumas regiões.
A Justiça Federal determinou que até a quinta-feira (10) a energia fosse 100% restabelecida, mas o prazo não será cumprido. A previsão é que a luz só volte completamente entre 20 e 30 dias, segundo reportagem do jornal O Globo.
O apagão começou após um incêndio atingir um transformador de uma subestação de energia na zona norte de Macapá por volta de 21h de terça-feira (3). O problema levou ao desligamento automático do abastecimento do estado.
A subestação de energia do Amapá tem três transformadores. Um deles foi atingido diretamente pelo fogo. O governo suspeitava que o incêndio tivesse sido causado por um raio, mas uma investigação da Polícia Civil descartou a tese. Outro transformador acabou danificado. O terceiro já não estava em funcionamento desde dezembro de 2019, e passava por manutenção.
Uma subestação é responsável por reduzir a tensão da energia que chega pelas linhas de transmissão do Sistema Interligado Nacional para distribuí-la à população. O Amapá está ligado a esse sistema por uma única linha.
O Sistema Interligado Nacional é subordinado ao ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), sob fiscalização da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), subordinada ao Ministério de Minas e Energia.
A subestação é operada pela empresa Linhas de Macapá Transmissora de Energia, que teve R$ 50 milhões em bens bloqueados pela Justiça estadual. A empresa era controlada pelo grupo espanhol Isolux. Mas a multinacional passou por um processo de recuperação judicial e, no início de 2020, a Linhas de Macapá Transmissora de Energia foi transferida para a Gemini Energy, grupo controlado por fundos de investimento.
O serviço de fornecimento de energia elétrica no Amapá funciona por concessão, uma das modalidades de desestatização. Nesse modelo, o governo cede a uma empresa o direito de explorar determinada atividade por um prazo pré-estabelecido.
Como opera o setor elétrico
O setor elétrico no Brasil pode ser dividido em três principais atividades: geração, transmissão e distribuição de energia. Há empresas que atuam em mais de uma dessas atividades. Como um todo, o setor é regulado pela Aneel, agência do governo federal.
GERAÇÃO
O setor de geração é o responsável pela produção da energia no país. A principal fonte de geração de energia do país é a hidrelétrica, seguida à distância pela termelétrica. Nesse setor – considerado altamente competitivo –, atuam empresas como Eletrobras, Engie Brasil, Energias do Brasil, Cemig, Copel e AES Tietê.
TRANSMISSÃO
O setor de transmissão de eletricidade é responsável por levar a energia das geradoras até os centros de distribuição. A remuneração das transmissoras não depende de quanta energia é transportada, e sim do alcance e disponibilidade da estrutura de transmissão. A principal empresa dentro dessa atividade é a Eletrobras, que opera praticamente metade das linhas. A empresa Linhas de Macapá Transmissora de Energia, envolvida no apagão no Amapá, é a responsável pela transmissão de boa parte da energia ao estado.
DISTRIBUIÇÃO
Já as empresas distribuidoras são aquelas que levam a energia elétrica aos consumidores finais. São elas as principais responsáveis pelo fornecimento de energia a residências e empresas em centros urbanos. A remuneração das distribuidoras depende da quantidade de energia que é demandada pelos consumidores finais. A Eletrobras não participa do mercado de distribuição desde o final de 2018, quando vendeu sua última empresa no ramo. No Amapá, a empresa responsável pela distribuição é a Companhia de Eletricidade do Amapá, sociedade mista controlada pelo governo do estado. O preço da tarifa de distribuição de energia cobrado pela empresa fica abaixo da média nacional, segundo ranking da Aneel. Algumas outras empresas que atuam nessa atividade são Enel, Copel, Cemig, Energias do Brasil, CPFL Energia, Light e Energisa.
O apagão no Amapá e a privatização da Eletrobras em Brasília
O fato de que a falha ocorreu em um transformador administrado por uma empresa privada repercutiu mal em Brasília. O apagão pode mudar os rumos da privatização da Eletrobras, estatal que atua na geração e transmissão de energia elétrica no Brasil. A crise de energia elétrica no Amapá trouxe desconfiança entre os parlamentares sobre a possibilidade de repassar a maior estatal do setor para o controle da iniciativa privada.
Um argumento contrário à privatização da Eletrobras é que a situação no estado nortista evidenciou falhas e dificuldades em fiscalizar a atuação de empresas privadas que atuam no setor elétrico.
A demora e dificuldade da Linhas de Macapá Transmissora de Energia em repor os transformadores danificados também colaborou para aumentar as dúvidas.
O setor público acabou sendo o principal responsável pela ação emergencial durante a crise no Amapá. A Eletronorte, subsidiária da Eletrobras, foi autorizada pelo Ministério de Minas e Energia na sexta-feira (6) a contratar em caráter emergencial energia produzida por unidades termelétricas.
Já na terça-feira (10), o Ministério de Desenvolvimento Regional liberou R$ 21,6 milhões para o aluguel de geradores durante o período de desabastecimento de energia. O dinheiro também será usado para comprar os combustíveis necessários para o funcionamento dos geradores.
Em meio ao apagão, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM) – que representa o estado do Amapá –, defendeu que o contrato de concessão para a Linhas de Macapá Transmissora de Energia deve ser cassado.
O senador também defendeu que a Eletronorte assuma a subestação e que a Aneel faça uma “investigação rigorosa” da atuação da empresa concessionária. O irmão do presidente do Senado, Josiel Alcolumbre (DEM), disputa a prefeitura de Macapá nas eleições municipais marcadas para o domingo (15).
Segundo informações de bastidores da coluna Painel do jornal Folha de S.Paulo, Alcolumbre já tinha resistência à privatização da Eletrobras. O apagão no Amapá deve diminuir ainda mais a chance do projeto ser aprovado no Senado. O canal CNN Brasil afirma que o presidente Jair Bolsonaro ligou para Alcolumbre para conversar sobre o tema.
Uma reportagem da revista Exame reiterou que o clima no Congresso é desfavorável à privatização da Eletrobras. Entre parlamentares da oposição, o entendimento é que a crise no Amapá praticamente enterrou as chances do projeto ser votado em um futuro próximo – apesar de não ser descartada mais à frente.
Mesmo senadores e deputados alinhados com o governo reconhecem que o apagão no Amapá deve atrasar os planos de repasse da Eletrobras para a iniciativa privada – a expectativa é que o texto fique parado pelo menos até metade de 2021.
Para os defensores da medida, o caso no estado da região Norte não mudou a necessidade da privatização, mas mostrou que é preciso ser mais rígido e colocar um esforço maior de fiscalização sobre as empresas privadas que operam no setor elétrico.
A posição do governo é semelhante. O secretário especial de Desestatização do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord, disse em entrevista à agência Bloomberg que mesmo com o apagão no Amapá, “a privatização ainda é o caminho”.
Segundo o secretário, o caso expôs a necessidade de um novo marco regulatório para melhorar o processo de concessões ao setor privado. Já o ministro da Economia, Paulo Guedes, segue tratando a privatização da Eletrobras como uma das prioridades do governo.
O que diz o projeto de privatização
A privatização da Eletrobras está em estudo em Brasília desde antes mesmo da chegada de Paulo Guedes ao Ministério da Economia. As conversas sobre o tema começaram no governo de Michel Temer (2016-2018).
Mas foi só em novembro de 2019, já sob a presidência de Jair Bolsonaro, que o projeto de lei para privatizar a Eletrobras foi apresentado ao Congresso. Por se tratar de uma empresa-mãe que abriga outras subsidiárias, o repasse da Eletrobras à iniciativa privada precisa ser aprovado pelos deputados e senadores.
O projeto apresentado pelo governo propõe a emissão e venda de ações da Eletrobras. A ideia é que, com essa operação, a participação do governo na empresa caia para abaixo de 50% – em junho de 2020, ela estava em pouco mais de 60%. Nenhum acionista poderá deter mais de 10% da participação.
A partir do momento em que a União fica com menos de metade das ações da Eletrobras, ela deixa de ter controle societário. Isso não significa que o governo venderá totalmente a empresa, mas sim que deixará de ter o controle acionário sobre a operação.
O projeto, a princípio, não prevê que o governo tenha a chamada “golden share”, que daria à União privilégios como poder de veto em decisões estratégicas. No entanto, o dispositivo pode ser incluído no texto como parte da negociação entre governo e Congresso para aprovar a privatização.
O projeto de lei está há um ano no Congresso, mas não andou nesse período. A chegada da pandemia do coronavírus em março ajudou a empurrar o projeto para o fim da fila. Mas mesmo tentativas do governo de avançar o texto no segundo semestre enfrentaram resistência dos parlamentares – em especial no Senado.
O texto foi entregue em 2019 à Câmara dos Deputados. Mas diante da dificuldade maior de obter apoio entre senadores, o governo tenta levar o projeto primeiro para o Senado, para não correr risco de aprovar o texto na Câmara para depois vê-lo ir para a gaveta na outra casa.
A demora dos deputados para pautar o projeto – que ajudou a acirrar os ânimos entre Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) – também é outro motivo por trás da tentativa de alterar o caminho do texto.
A manobra passa pela criação de um “projeto clone” da privatização da Eletrobras, que comece a tramitar pelo Senado. A possibilidade é incerta – há possíveis irregularidades envolvidas na duplicata, e ainda é necessário encontrar um senador para assumir a autoria do novo projeto.
A bandeira privatizadora de Guedes
A Eletrobras é a mais avançada entre as estatais que o governo fala em privatizar. Outras que integram a lista são os Correios e o Porto de Santos.
A gestão de Paulo Guedes no Ministério da Economia tem sido marcada por seguidas promessas não concretizadas de grandes levas de privatização – termo que é usado, por convenção, para referir às desestatizações.
Em quase dois anos de mandato, o governo Bolsonaro concretizou a venda de algumas empresas subsidiárias, como a BR Distribuidora, ligada à Petrobras. A privatização dessas empresas controladas por outra empresa estatal não precisa passar pelo Congresso. Mas entre as empresas-mãe, nenhuma chegou a ser repassada para a iniciativa privada.
A demora para avançar na agenda de privatização é motivo recorrente de frustração dentro do Ministério da Economia. Em agosto, Salim Mattar, da Secretaria Especial de Desestatização, pediu demissão pela dificuldade de concretizar o repasse de estatais à iniciativa privada. Na mesma época, outros membros da equipe econômica deixaram a pasta, em um movimento de debandada.
Na terça-feira (10), o próprio Guedes admitiu o incômodo. Ele afirmou que “acordos políticos” travam a agenda de privatização, defendida desde a campanha eleitoral de 2018.
“Estou bastante frustrado de estarmos aqui há dois anos e não termos conseguido vender nenhuma estatal”- Paulo Guedes, ministro da Economia, em evento da CGU (Controladoria-Geral da União) em 10 de novembro de 2020.